OUTUBRO 2012
DOENçAS AUTO-IMUNES
As doenças auto-imunes são de difícil diagnóstico e não têm cura, estando ainda por identificar o que as despoleta. O Dr. Ricardo Figueira, Médico Reumatologista, fala em entrevista sobre as principais doenças auto-imunes do seu âmbito de actuação, nomeadamente o Lúpus Eritematoso Sistémico. 

O que são doenças auto-imunes? 
Nós temos um sistema de defesa, chamado sistema imunitário, que nos defende e nos protege de agressões e de agentes externos, tais como, vírus, bactérias, ou proteínas estranhas ao nosso organismo. Antes do nascimento, no útero da nossa mãe, estamos num ambiente estéril, em que não há nenhum agente estranho, pelo que o nosso sistema imunitário tem um grau de conhecimento, um “armamento”, muito reduzido. Depois do nascimento, somos expostos a uma série de agentes e é então que o verdadeiro sistema imunitário se começa a formar. Como é que isto se processa? Primeiro temos que reconhecer aquilo que é externo e aquilo que é nosso. A capacidade do nosso organismo tolerar as nossas proteínas, as nossas células e os nossos órgãos, chama-se auto-tolerância e quando se quebra esta capacidade de deixar estar aquilo que é nosso, surge a doença auto-imune. Assim, existe doença auto-imune quando, por alguma razão, o nosso sistema de defesa, “olha” para uma proteína, para um órgão, para um tecido, identifica-o como sendo estranho e desenvolve, a partir daí, uma resposta que visa eliminar ou diminuir a sua actividade. O anticorpo é a parte do sistema imunitário que vai reagir contra o agente externo, e o agente externo é o antigénio. É da reacção anticorpo/antigénio que se forma o complexo auto-imune, que visa a eliminação desse agente externo. 

Quais as principais doenças auto-imunes no seu âmbito de actuação?
As doenças auto-imunes afectam variadíssimos aparelhos, órgãos e sistemas, sendo todas elas raras. Muitas delas estão fora do âmbito da minha especialidade, a Reumatologia, que engloba toda a patologia não traumática do aparelho locomotor – ou seja, que afecta ossos, músculos, articulações e ligamentos e as doenças auto-imunes do tecido conectivo. O paradigma da doença auto-imune com que nós lidamos é o Lúpus Eritematoso Sistémico (LES), que é, sem dúvida, a doença mais frequente. Esta é uma doença auto-imune sistémica, ou seja, atinge potencialmente qualquer órgão ou qualquer tecido do organismo, podendo causar dano estrutural e levar à perda de função, desde o rim, às articulações, à pele, ao pulmão, ao coração, etc. Outros exemplos de doenças auto-imunes do âmbito da Reumatologia são, o Síndrome de Sjögren, a Esclerodermia, a Polimiosite, a Dermatomiosite, a Síndrome dos anti-corpos anti-fosfolipidos, entre outras. Existem ainda outras doenças inflamatórias crónicas em que, num determinado ponto da sua evolução, há uma inflamação que se perpetua e se pensa que aí estarão certamente envolvidos mecanismos auto-imunes. 

O que despoleta as doenças auto-imunes? 
Essa é a grande questão. É certo que existe um envolvimento de factores genéticos e de factores ambienciais. Relativamente a determinadas características genéticos associadas às doenças auto-imunes, é preciso ter em atenção que estas não fazem diagnósticos. Algumas existem numa percentagem significativa da população e tal não equivale a desenvolver doença. A grande questão prende-se com o factor ambiencial. Há indivíduos que têm um determinado marcador genético ou um anticorpo positivo e vivem toda a sua vida sem desenvolver doença. Podemos questionar, então, porque é que outros desenvolvem doença. Será um agente bacteriano? Será uma partícula viral? Será um tóxico? Não se sabe, embora em alguns casos existam suspeitas mais bem fundamentadas que noutros. 

É difícil fazer o diagnóstico destas doenças?
Efectivamente, as doenças auto-imunes costumam ser de diagnóstico difícil. Se algumas são de mais fácil diagnostico por envolverem apenas um determinado órgão, outras por envolverem vários órgãos e sistemas, apresentam um quadro clínico muitas vezes inespecífico que pode existir numa grande variedade de doenças mais comuns. Em primeiro lugar, é essencial, para se fazer o diagnóstico da maioria das doenças auto-imunes, ter em conta que não existe doença sem manifestações clínicas, sem queixas do doente. Muitas vezes, quando há pouca experiência no acompanhamento destes doentes, há a tentação de solicitar análises na ausência do quadro clínico adequado e, perante a positividade para determinados anticorpos, admitir a doença. A existência de auto-anticorpos mais ou menos específicos de determinadas doenças auto-imunes, não significa doença. Quando se pedem as análises sem uma avaliação correcta, sem um grau de suspeição elevado, o médico fica apenas com uma análise positiva que por si só não é conclusiva e cria ansiedade nos doentes. É preciso deixar bem claro que a presença de auto-anticorpos não equivale a doença. As análises devem ser feitas depois de uma avaliação clínica correcta, com pesquisa de sintomas, com avaliação das queixas e só depois disso é que se deve passar aos exames laboratoriais, nomeadamente à pesquisa de auto-anticorpos. 

Há doentes que vivem muito tempo com a doença antes do diagnóstico?
Pode acontecer... Por exemplo, no caso do LES, podem existir dois tipos de apresentação: a primeira, que é a mais comum, caracteriza-se por ser progressiva e nesta predomina um dos sintomas mais inespecíficos: a fadiga. O doente sente-se cansado, não consegue fazer as mesmas coisas que fazia, doem-lhe as articulações, e algumas vezes este quadro clínico arrasta-se durante algum tempo, até que se faça o diagnóstico correcto. Depois, temos as formas de apresentação catastróficas, menos frequentes, mas mais graves, e com um prognóstico mais reservado. Nestes casos, a primeira manifestação é o atingimento grave de um órgão importante, como o rim ou o cérebro, como insuficiência renal ou convulsões. A grande maioria dos casos de LES não leva a uma grande incapacidade ou atinge órgãos major: a doença evolui com períodos de agudização, alternados com períodos de razoável controlo da doença, permitindo uma razoável qualidade de vida ao doente. 

Como se processa o tratamento?
Antes de tudo, temos de dizer que estas doenças não têm cura. Isto porque a cura implica uma acção dirigida à causa e esta ainda não é conhecida. Agora, temos um objectivo que é cada vez mais bem conseguido hoje em dia: fazer com que a doença entre em remissão, ou seja, que não haja manifestações desta no organismo. Existem duas vertentes importantes do tratamento: a primeira passa por repor a função do órgão que é afectado pela doença auto-imune – por exemplo, no caso da Diabetes Tipo 1, em que há uma reacção auto-imune contra as células produtoras da insulina, é preciso repor a insulina que deixou de ser produzida por aquele órgão, de maneira a manter a vida. A segunda vertente do tratamento passa pela utilização de imunossupressores, que são medicamentos que visam diminuir a actividade dos imunocomplexos, ou seja, aquela actividade “errada” do sistema imunitário, de modo a que pare o seu processo de agressão às células. 

Existem riscos associados ao tratamento?
Temos de ter presente que os medicamentos imunossupressores têm uma acção muito pouco selectiva sobre o sistema imunitário, portanto, ao diminuir a sua actividade vão expô-lo a agressões externas, tais como agentes infecciosos. Esses medicamentos podem ter também acções nefastas sobre os órgãos: alguns podem ser agressivos para o rim, a medula óssea, o osso, etc., pelo que os efeitos laterais têm de ser cuidadosamente considerados. A decisão sobre o uso de determinado imunossupressor e a sua dose, depende da relação risco-benefício para o doente. 

O tratamento é multidisciplinar?
Poderá ser, nos casos em que estejamos perante uma doença auto-imune sistémica. Por exemplo, no caso do LES, na minha opinião, o Reumatologista deverá ser o coordenador da equipa, por ser o mais habilitado. Mas, se a certa altura, surge, por exemplo, atingimento renal, será preciso recorrer a um nefrologista. No caso de uma pneumonite, será necessário um pneumologista, ou noutros casos um cardiologista, um dermatologista, um oftalmologista, etc. Esta equipa, deverá ser coordenada pelo reumatologista, ou na indisponibilidade deste, por outro especialista com experiência documentada no controlo destas doenças, porque como já falámos, são de diagnóstico e tratamento muito complexo. 

Em termos de estilo de vida, é possível prevenir o aparecimento de uma doença auto-imune?
O facto de ter um familiar de primeiro grau com uma doença auto-imune faz com que o indivíduo tenha um risco mais elevado de ter uma qualquer doença auto-imune (não necessariamente a mesma), em comparação com outro que não tenha tais antecedentes familiares. Mas isso não quer dizer que vá ter, obrigatoriamente, uma doença auto-imune. 
Quando alguém com história familiar de doença auto-imune me pergunta se pode fazer algo ao nível do seu estilo de vida, digo-lhe que deverá adoptar um estilo de vida saudável tal como qualquer outra pessoa. Isto traduz-se, essencialmente, por uma dieta equilibrada e pela prática regular de exercício físico. 



 


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