OUTUBRO 2011
SAúDE MENTAL
As doenças do foro mental continuam a ser alvo de um certo estigma social, associado ao medo da loucura e da diferença. O Dr. Fernando Sales Caldeira, médico psiquiatra, fala em entrevista das principais doenças mentais e critica o excesso de internamentos.

Quais são as principais doenças do foro mental?
Desde logo a depressão, que para além de ser uma doença em si, também se pode dizer que está presente em todas as doenças mentais. No fundo, a depressão passa por a pessoa não ter auto-estima, não ter confiança em si própria, isto porque não se sentiu apreciada pelas pessoas mais importantes da vida, nomeadamente pelo pai e pela mãe, pelo que se sente inferior aos outros. Muitas vezes, tem vergonha de dizer que tem uma depressão, porque sente que isso é defeito dela. Para além da depressão, temos a esquizofrenia e a doença bipolar, também chamada psicose maníaco-depressiva. A diferença entre as neuroses e as psicoses é que, nestas últimas, a mente não é dona de si própria: os psicóticos não sabem que estão doentes.

Em termos gerais, como se caracterizam estas doenças?
No caso da depressão, as pessoas apresentam estes sintomas: abatimento, falta de forças, falta de interesse pelas coisas mais comuns do mundo, como por exemplo tomar um café, ou falar com um amigo, tudo isso é uma maçada…. Estas pessoas não podem usufruir daquelas coisas que dão prazer e que todos nós gostamos, como ir ao cinema ver um bom filme com alegria… Já o transtorno bipolar é uma doença que se caracteriza por alterações: fases de mania, em que as pessoas sentem que é tudo muito fácil - contam anedotas, têm sempre uma piada na ponta da língua, embora se perceba que debaixo dessa aparente boa disposição há uma certa agressividade –, mas quando essa fase de mania termina, aparece a depressão. No fundo, a mania funciona como uma defesa contra a depressão: em vez de se deprimir, o indivíduo imagina que pode fazer tudo o que é possível, é como se fosse o “rei do mundo”. Na fase melancólica que se sucede, já sente que não vale nada e há o perigo até de tentar o suicídio. Estas fases sucedem-se em ciclos que variam de pessoa para pessoa. No que respeita à esquizofrenia, podemos dizer, muito resumidamente, que as pessoas que têm esta doença sofrem de delírios e alucinações. Em resumo, podemos dizer que o neurótico, ou seja, a pessoa deprimida, tem medo de perder o amor do objecto (a mãe ou o pai, podendo depois transferir esse medo de perder o amor para outra pessoa, como o companheiro ou companheira); já o psicótico não tem medo de perder o amor, mas sim o próprio objecto, tem medo da separação da pessoa de quem ele depende. Essa relação até pode ser intempestuosa, mas se existe uma separação aparece a chamada descompensação psicótica, com todas as fantasias catastróficas, raivas, vinganças, ideias de suicídio, etc. O esquizofrénico, é como se não tivesse objecto e, portanto, entra num mundo que é um pouco o mundo da criança quando nasce, que ainda não tem objecto de amor nem pensamento, uma vez que este só se começa a organizar depois, e tem delírios e alucinações que aparecem na doença.

Como é feito o diagnóstico?
O diagnóstico é feito primordialmente através do interrogatório: deixamos as pessoas falarem e se aparecerem os delírios, as alucinações, estados de espírito exaltados ou uma depressão exagerada, fazemos a partir daí o diagnóstico. Há casos em que, tendo uma certa experiência, quase basta um aperto de mão para suspeitarmos que uma pessoa é esquizofrénica, porque esta tende a fugir do contacto, da relação com os outros – dá a mão, mas retira-a rapidamente. Há uma escola da psiquiatria que defende que todos estes problemas têm uma origem biológica ou genética, mas eu acredito que estas doenças aparecem em função das primeiras relações que mantemos, com a mãe e o pai. O olhar dos pais é muito importante para um bebé, que busca aí o amor, o carinho e a compreensão. O encantamento dos pais com os bebés é fundamental… É frequente aparecerem depressões pós-parto, que são uma coisa pouco lógica, porque surgem muitas vezes em mães que queriam autenticamente ter um filho e estavam encantadas quando o bebé ainda estava na barriga. Depois de nascer, entram numa depressão profunda, porque estão a reviver inconscientemente a sua própria infância. Portanto, isto não quer dizer que não estejamos na presença de mães virtuosas: depois de tratadas e curadas, são mães exemplares para os seus bebés.

A depressão pode também estar associada ao cansaço físico?
Fala-se muito que o “stress” e o ritmo da vida diária também podem contribuir para desequilibrar as pessoas, mas estou convencido que esse é o factor mais superficial. Não tenho dúvidas de que as pessoas trabalham muito, mas se fizerem um trabalho que as entusiasme, o cansaço não é um problema: basta que sintam que foram produtivas, que realizaram algo relevante. Portanto, o problema não está no trabalho em si, mas na forma como as pessoas trabalham e está, sobretudo, em terem ou não depressão.

Existe um certo estigma social associado às doenças do foro mental?
Sim, existe. No fundo, a questão passa pelo medo da loucura e de ser diferente, apesar de este panorama estar a mudar hoje em dia. Historicamente, os loucos eram segregados para tratamento, quando muitos destes doentes poderiam perfeitamente fazer a sua profissão, desde que devidamente acompanhados, uma vez que é certo que as doenças mentais limitam as capacidades de gerir uma profissão. Hoje em dia, existe aqui na Região a tentativa de integrar estes doentes no hospital – as doenças psiquiátricas são tratadas no Hospital dos Marmeleiros.

Em termos de tratamento, podemos falar de cura para estas doenças?
Há na medicina dois conceitos: cuidar e curar. Nas doenças mentais mais clássicas, nomeadamente as psicoses, cuidar significa recorrer aos medicamentos. Buscar a cura para o doente, já é algo que se fará ao nível da intervenção psicoterapêutica. Hoje em dia, já se faz psicanálise para doentes bipolares e esquizofrénicos, mas estes são casos muito difíceis. No caso das depressões, sobretudo na vertente neurótica, é preciso esclarecer que os medicamentos não curam: as pessoas sentem-se melhores quando os tomam, mas não ficam curadas e quando acontece um episódio que lhes lembra a depressão voltam a cair no mesmo. Ainda bem que existem estes medicamentos, que desempenham um papel importante, o que não se pode fazer é cingir o tratamento apenas aos fármacos: é preciso um trabalho mais apurado, que passa por ajudar os doentes a corrigir um trajecto que estava errado, através de uma relação que se estabelece com eles. Claro que há muitas pessoas que não podem fazer psicoterapia nem psicanálise, nem existem técnicos qualificados em número suficiente. Mas não se podem tratar sentimentos apenas com medicamentos – o mais importante é perceber o que houve, ou deixou de haver, na vida daquela pessoa, que levou à doença. O tratamento pode demorar vários anos, mas ao longo desse tempo, os doentes sentem-se melhor. Eu nunca digo à pessoa que está curada, tem de ser ela própria a dizê-lo.

Quando é que o médico pode decidir que o internamento é a melhor opção?
Há casos de pessoas que, estando numa agitação muito grande, muito desorientadas, podem ser más para elas próprias e para os outros. Nestes casos, o internamento aparece como uma solução para sua própria defesa, mas estes são casos raros. Eu acho que há um excesso de internamentos e tenho combatido muito isso, porque acredito que as pessoas ficam retraídas. Por exemplo, quando nós fazemos uma viagem de um mês, ao voltarmos à nossa terra temos de nos reorganizar. Se isso acontece com uma pessoa que está bem, imaginemos então o que se passa com uma pessoa que tem uma perturbação e que é colocada durante um mês num estabelecimento psiquiátrico… Corre-se o risco de entrarmos num ciclo vicioso em que o doente pode ser internado novamente e assim por diante até ter de ficar internado para sempre. Toda a psiquiatria em Portugal está hoje virada para fugir aos internamentos, mas aqui na Região, que conta com mais psiquiatras e mais psicólogos que outras zonas do país, paradoxalmente tem vindo a aumentar o número de internamentos. As pessoas dão ao internamento um efeito “mágico”, pensam que vai fazer com que tudo fique bem, quando não é assim. E depois, em algumas instâncias, a própria família faz pressão para que as pessoas sejam internadas, às vezes com uma certa razão e outras por interesse, mas o psiquiatra não pode ser influenciado por isso. Eu prefiro correr o risco de manter o paciente cá fora, uma vez que, hoje em dia, há medicamentos que nos dão uma grande segurança e que podem ser administrados pela família, desde que esta dê garantias nesse sentido. O apoio familiar é fundamental neste processo.


 


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