SETEMBRO 2009
ENF.º ÉLVIO JESUS: “É PRECISO MAIS REGULAçãO NA áREA DA SAúDE”

O presidente da Secção Regional da Ordem dos Enfermeiros, Élvio Jesus, defende em entrevista à Newsletter da Farmácia do Caniço, que deveria haver uma maior regulação na área da Saúde, a começar pela imposição da exclusividade nos cargos de chefia. Uma maior celeridade no lançamento dos concursos de admissão é a solução apontada para fazer face ao actual défice de 600 enfermeiros na Região Autónoma da Madeira.

Existe uma grande falta de enfermeiros em Portugal?
Há falta de enfermeiros em todas as áreas, desde a área hospitalar até ao nível dos cuidados primários... Falando no Continente, a grande falta verifica-se ao nível da rede de cuidados de saúde primários. Aqui na Madeira, as faltas de enfermeiros são distribuídas mais equitativamente entre hospitais e centros de saúde. Neste último caso, a carência maior até se verifica nos centros de saúde urbanos. E isto, porque são zonas que cresceram muito rapidamente, levando ao aumento das necessidades em termos de recursos humanos, mas também de meios: para os enfermeiros irem a casa das pessoas, têm de ter meios de deslocação, para atenderem as pessoas nos centros de saúde têm de ter espaços, equipamentos e disponibilidades em termos de estruturas. Ou seja, não é apenas um problema de falta de pessoas: existe também falta de infra-estruturas e de outros recursos materiais, tais como viaturas. Os meus colegas nesta área muitas vezes têm apenas uma viatura disponível para fazer visitas domiciliárias.

Esses meios seriam especialmente importantes nas zonas rurais, onde existem pessoas idosas que vivem em zonas de difícil acesso?
De facto, aqui na Madeira existem zonas geográficas de difícil acesso, mas depois as zonas urbanas têm também as novas questões da saúde: a pobreza, os problemas de natureza social com repercussão na saúde, como a toxicodependência, o alcoolismo, doenças de natureza psico-emocional, para não falar nas psiquiátricas. Os idosos representam também um problema cada vez premente. Tudo isto requer mais pessoas, maior mobilidade, mais recursos e maior disponibilidade.

Quais são as estimativas da Ordem dos Enfermeiros em termos da necessidade de profissionais na Região Autónoma da Madeira?
O número que temos mais ou menos concertado, entre Secretarias, Sindicato e Ordem, aponta para os 2500 enfermeiros, podendo ir até aos 3000. Neste momento, temos à volta de 1900 enfermeiros na Região Autónoma da Madeira. E é preciso ter em conta que nem todos os enfermeiros que estão inscritos na Ordem exercem a actividade, porque temos pessoas aposentadas que contam para esta estatística, mas que não estão a exercer. Mas em termos gerais, temos um défice de 600 enfermeiros, para nos próximos anos fazer face às necessidades. O número de 3000 já será para quando a exclusividade seja mais regulada. Como sabemos, há enfermeiros que trabalham em mais que um sítio - e bem, porque embora não sendo uma situação ideal, existe falta destes profissionais, pelo que esta é uma situação que acaba por colmatar algumas necessidades. Felizmente, na questão da empregabilidade, vamos tendo saída profissional… O nosso problema é a questão no Continente, uma vez que os acessos à empregabilidade estão um pouco mais limitados nesta altura de crise. Isto leva a que, quando há um concurso na Madeira, haja um fluxo de colegas que concorrem para cá. Não é que não sejam bem-vindos, o problema é que vêm para cá alguns meses e na altura em que têm já alguma integração nas organizações, legitimamente querem ir embora. Esta é uma situação que não serve nem aos próprios nem à população.

Como vê a possibilidade de recrutar enfermeiros ao estrangeiro?
Primeiro, deveríamos garantir as melhores condições de empregabilidade e de desenvolvimento profissional aos nacionais e o estímulo aos jovens candidatos ao ensino superior para a Enfermagem. Depois, é preciso entender que existe falta de enfermeiros em todo o mundo, mas com especial incidência nos países mais pobres ou em vias de desenvolvimento. É impraticável ir buscar enfermeiros aos países mais desenvolvidos, porque os seus vencimentos seriam incomportáveis para nós. No caso dos países em desenvolvimento, é uma questão que não é recomendável eticamente, porque as suas carências são ainda maiores que as nossas. Ou seja, moralmente, trata-se de uma solução pouco aceitável. Temos o exemplo dos Países de Língua Oficial Portuguesa (PALOP): há países como a Guiné ou Cabo Verde, que fazem um esforço muito grande para formar os seus enfermeiros e que, infelizmente, não têm capacidade de concorrer em termos remuneratórios com países como Portugal e muito menos com países do Norte da Europa, como a Inglaterra. Chegam a formar um razoável número de enfermeiros para apenas ficarem lá 5 ou 10 por cento desse total. E são países cuja falta de profissionais é até muito mais grave que a de Portugal.

Mas entretanto, também existem profissionais portugueses que são atraídos para países onde as remunerações são mais elevadas?
É um facto que esses países vêm muitas vezes recrutar cá em Portugal e, mais especificamente, à Madeira. Nos últimos anos, tem havido um período de espera para admissão no primeiro emprego que leva a que, para não ficarem sem actividade neste período, alguns enfermeiros acabem por arranjar possibilidades no estrangeiro bem remuneradas e com possibilidades de desenvolvimento futuro. Normalmente esse período de espera para admissão no primeiro emprego cifra-se nos nove a dez meses.

Como se explica que exista um período tão longo de espera, tendo em conta a actual falta de enfermeiros?
Temos dificuldade em entender… Nós compreendemos porque é que não se pode abrir de qualquer maneira um concurso, porque os processos têm de ser sérios e transparentes. Tratam-se de concursos que permitem uma certa estabilidade de emprego, porque oferecem contratos sem termo, e que são apelativos para muitos colegas do Continente. Imaginemos que abre um concurso para, digamos, 80 vagas: podem chegar a concorrer 400 ou 500 enfermeiros, porque no Continente as coisas estão um pouco mais difíceis em termos de ofertas de contratos sem termo. Isto quer dizer que estes concursos levam tempo, porque há muitos candidatos para um número de vagas limitado. O que não se compreende é que se demore tanto tempo a abrir um concurso; depois de abrir esse concurso, nós compreendemos que entrevistar tantas pessoas demora tempo e depois existem ainda “timings” de recurso, de reclamação, de publicação, etc., o que é um processo legítimo e até desejável.

Já expressaram estas preocupações às autoridades de saúde regionais?
Todas estas preocupações têm sido colocadas, nomeadamente ao Sr. Secretário dos Assuntos Sociais, e temos tido um “feedback” positivo. E a verdade é que, não obstante a demora entre a realização do curso e a entrada no mercado de trabalho ser maior do que nós gostaríamos, neste momento apenas os enfermeiros que acabaram de se formar agora em Julho estão sem colocação, estando já prometida a abertura de novo concurso. Isto é fruto de uma boa vontade, em termos de admissão, que reconhecemos ao Governo Regional e ao Serviço de Saúde da RAM. E também o reconhecimento da falta de enfermeiros que existe, uma vez que temos enfermeiros a fazer mais de 80 horas semanais.

Esse acumular de horas pode ser problemático?
Estamos a falar de situações que não são muito frequentes, mas que existem, sobretudo em períodos de maior afluência de utentes ou de maior intensidade de férias. Estou-me a referir a serviços como as Urgências, os Cuidados Intensivos, etc… Estas unidades são muito especializadas e, portanto, há um universo restrito de profissionais aos quais se pode recorrer. Uma pessoa que trabalha muitas horas por semana, fazendo turnos consecutivos, corre riscos para ela própria e para os utentes que estão ao seu cuidado, pelo que são situações a evitar e a usar apenas em caso de extrema necessidade. O que temos vindo a dizer é que não faz sentido, enquanto existir esta pressão de carga horária sobre os enfermeiros, que não se continue a dar maior celeridade aos processos de recrutamento. Até porque, quando um enfermeiro termina o seu curso e vai ingressar numa organização, não está ainda em condições de substituir um colega mais experiente. O percurso de aquisição de competências tem de ser feito e só é possível com o tempo: não se podem queimar etapas. Se um enfermeiro se reforma, por norma são precisos dois para o substituir, porque normalmente as equipas têm de ser reforçadas quando integram pessoas com menor experiência. É preciso encontrar um equilíbrio na composição das equipas. Mas quanto mais cedo tivermos estas pessoas em percurso de desenvolvimento de competências, também mais cedo teremos um maior números de enfermeiros disponível para cuidar dos utentes de forma integral e segura.

Existem actualmente suficientes enfermeiros a ser formados?
Sim. De acordo com os dados de que dispomos, mesmo tendo em conta as aposentações, há um incremento gradual do número de enfermeiros. Ainda não corremos o risco de termos qualquer dia enfermeiros sem saída profissional. Por outro lado, existe a questão da especialização, que é algo que temos vindo a incrementar na profissão. Os enfermeiros são necessários não só porque as populações cada vez exigem mais cuidados de enfermagem, mas também porque a necessidade de uma maior especialização acaba por criar, na base, mais vagas. Relativamente aos cuidados de saúde primários, por exemplo, seria muito vantajoso que todas as famílias pudessem ter o seu enfermeiro de família. Este é um desiderato da Organização Mundial de Saúde (OMS), pelo menos desde o ano 2000. Infelizmente, é algo que ainda está longe de ser uma realidade no nosso país. Em Portugal, para além da falta de enfermeiros também há falta de médicos de família e o que é grave é que muitas pessoas não têm nem uma coisa, nem outra. O ideal seria que cada utente tivesse o seu médico e o seu enfermeiro de família. Não sendo para já isso possível, o que se desejaria seria que houvesse aqui uma articulação de forma a que, quem não tem médico de família, pelo menos pudesse ter enfermeiro de família.

Existem países em que os enfermeiros prestam a maior parte dos cuidados de saúde primários. Acredita que esse modelo teria sentido no nosso país?
Esse modelo é desejável e exequível. Em Portugal, o que se passa no Continente é um absurdo. Nas Regiões Autónomas, por outro lado, existe uma realidade mais equilibrada. No Continente, existem mais médicos do que enfermeiros na rede de cuidados de saúde primários. É claramente indesejável que haja esta desproporção, que é sinal de uma má política que tem anos. No caso da Madeira, proporcionalmente as coisas estão bem e o ideal seria incrementar o número tanto de médicos como de enfermeiros.

Como vê a relação entre os serviços de saúde público e o privado?
O problema do público e do privado verifica-se quando não existem regras. Esta regulação, actualmente, não funciona bem. Tem vindo a ser incrementada mas está muito aquém do nível regulador que se pretende na área da saúde. Por outro lado, não havendo regras nem monitorização, a indiferenciação entre aquilo que é público e o que é privado, cada vez se torna maior. Portanto, o que está mal é o sistema. Isto não quer dizer que o privado não tenha o seu lugar, desde que devidamente regulado. Mas está claro que a saúde tem de ser eminentemente pública para bem do cidadão, das comunidades e da sociedade.

Qual a sua opinião sobre as parcerias público-privadas no sector da saúde?
Devem ser feitas com muita cautela, porque trata-se de uma coisa relativamente nova no nosso país. A responsabilidade individual e a nossa cultura não são as mesmas que nos países do norte da Europa. Temos uma cultura que é um pouco avessa às normas, à responsabilização e às regras, e que associada a pouca experiência do sector público na contratualização com o privado, dá azo a que depois o público perca sempre. Estas parcerias têm de ser muito paulatinamente trabalhadas, até termos o “know-how” e evoluirmos também do ponto de vista dos valores da própria sociedade e do exercício da cidadania. Mas a questão dos profissionais trabalharem num lado e noutro vai persistir, por uma razão muito simples: as necessidades são muitas e por vezes os recursos são escassos. O ideal seria o que se vê em alguns países nórdicos, como a Suécia, por exemplo, em que quem trabalha no hospital “A”, seja ele médico, enfermeiro, farmacêutico ou auxiliar, não pode também trabalhar no hospital “B”.

Voltamos à questão do excesso de horas…
Em alguns casos justifica-se trabalhar nos dois sítios, só que a questão da regulação deve ser uma preocupação cada vez maior. Dever-se-ia começar pelos cargos de chefia, para assegurar que as pessoas que têm capacidade de contratualização num lado não são as mesmas que têm capacidade de contratualização no outro. Se calhar, o serviço público teria de pagar mais para garantir esta exclusividade ao nível dos cargos de chefia, mas acabaria por ganhar no cômputo geral, uma vez que teria a garantia de que as pessoas com cargos de chefia, fossem eles médicos, enfermeiros ou outros profissionais, se dedicariam mais à organização e gestão dos próprios serviços, dos centros de saúde ou hospitais. Isto devia fazer parte de uma visão, de um programa, com regras públicas, claras e transparentes, em que os próprios profissionais saberiam que o caminho era aquele e que, mais cedo ou mais tarde, todos estariam implicados.

Acha que deveria haver um diálogo mais alargado entre todos os profissionais do sector da saúde?
Esse trajecto tem vindo a ser incrementado, se bem que ainda existem muitos caminhos a percorrer. Sem trabalho em equipa, não existem cuidados adequados nem qualidade em termos de cuidados de saúde. Isto é dito há 30 anos pela OMS e faz parte de qualquer norma mais elementar da qualidade e da segurança: o trabalho de equipa é fundamental. Ordens profissionais, associações profissionais de outro tipo, Governo, empresas da área da saúde, hospitais, centros de saúde, serviços públicos e privados: todos devem fazer um esforço. A própria sociedade deve exigir que exista um trabalho em equipa na saúde, tal como noutras áreas em que a segurança é uma preocupação. Para podermos evoluir para respostas adequadas, eficazes e seguras, não há outra forma de proceder senão apostar no trabalho em equipa multidisciplinar e multiprofissional. Este trabalho é fundamental e todo o esforço que nós fizermos é pouco para vencermos o desafio da qualidade, da segurança e da sustentabilidade na saúde.

Como avalia o estado de preparação do Sistema de Saúde para o previsível aumento do número de casos de Gripe A nos próximos meses?
De um modo geral, a resposta está a ser organizada e evidencia preocupação, planeamento, por exemplo com a elaboração de planos de contingência. Se calhar, beneficiamos do facto da gripe das aves ter servido de balão de ensaio para enfrentarmos com maior tranquilidade e maior sistematização esta pandemia. Não sendo uma gripe que preocupe sobremaneira em termos da taxa de mortalidade, trata-se de um vírus praticamente novo, que apanha as populações sem resposta imunitária, pelo que a propagação e a incidência da doença vão ser maiores quando comparadas com as da gripe normal. O vírus parece não ser tão agressivo quanto se julgava inicialmente, o que é uma boa notícia.


 


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