AGOSTO 2009
LABORATóRIO DE GENéTICA HUMANA: INVESTIGAçãO NA FRONTEIRA DO CONHECIMENTO

O Laboratório de Genética Humana da Universidade da Madeira está a ganhar renome graças à sua actividade de investigação. Numa fascinante entrevista à Newsletter da Farmácia do Caniço, o director do laboratório, António Brehm, e os investigadores Ana Teresa Fernandes e Hélder Spínola falam dos projectos que estão a ser desenvolvidos e dos planos ambiciosos para o futuro, apesar das dificuldades de financiamento.

Como surgiu o Laboratório de Genética Humana (LGH)?
António Brehm (A. B.) - Foi em 1992 que eu montei o primeiro laboratório de genética molecular na Ilha da Madeira. O Laboratório sempre fez parte da Universidade da Madeira, sendo uma extensão do curso de Biologia, e pouco a pouco foi-se individualizando. Em 1997, começámos a fazer testes e a trabalhar em prestação de serviços propriamente dita, e a partir daí o âmbito da prestação foi crescendo. Em 2001, começámos a trabalhar com o Instituto Nacional de Medicina Legal e com o Serviço Regional de Saúde. Já temos bastantes anos de actividade e, sobretudo, essa actividade sempre consistiu, ao longo destes anos, em ir aumentando o “know-how” e as técnicas que se iam gradualmente pondo a ponto. Neste momento, temos uma equipa com 12 pessoas, sendo que cinco são investigadores residentes.

Trabalham apenas com genética humana ou estudam também outras espécies?
A.B. - O nome de Laboratório de Genética Humana foi o nosso primeiro nome e criou história, de maneira que não tínhamos razão nenhuma para o mudar. Mas a área forense animal é uma em que já trabalhamos há bastante tempo. Já fizemos, por exemplo, trabalhos de avaliação de paternidade em peixes, mais especificamente em pargos, para a Marina da Calheta. Este foi um projecto que começou em 2003 e acabou agora e deu muito bons resultados. Basicamente, o que se pretendia saber era identificar peixes reprodutores com as melhores características. Também a inspecção económica já nos trouxe aqui casos e já tivemos uma investigação pedida pelo Tribunal do Porto Santo, relacionada com a identificação de aves através de penugens em que se suspeitava ter ocorrido abate de carragas, o que é proibido porque se trata de uma espécie protegida. Este foi um caso muito difícil, mas em que conseguimos fazer a identificação com sucesso. Portanto, existem estes casos pontuais no âmbito da biologia forense e que cabem perfeitamente dentro dos objectivos do laboratório. Aliás, temos alguns projectos muito interessantes que ainda não foram feitos apenas por falta de dinheiro: estou-me a lembrar, por exemplo, da identificação de uma variedade de vacas anãs existente na Ilha, e sobre as quais havia o interesse por parte das autoridades pecuárias de saber o que eram de modo a poder certificá-las. Também temos a identificação da cabra do Bugio e dos porcos selvagens, sendo que neste último caso havia a ideia de podiam estar aparentados com a variedade bísara do Norte de Portugal, podendo ter sido trazidos para a Madeira nos primeiros tempos da colonização.

Quem são os vossos principais clientes?
A. B. - Os nossos primeiros dois grandes clientes foram o Instituto de Medicina Legal e o Hospital Central do Funchal - este último a nível dos cariótipos para análise pós-natal, ou seja, análise de malformações, alterações estruturais dos cromossomas, que na maior parte dos casos vinham da pediatria. Da parte do Instituto de Medicina Legal, tinha a ver com os testes de paternidade. Começámos a fazer testes de paternidade sobretudo para o Instituto mas agora fazemos para toda a gente - qualquer privado pode chegar e pedir-nos um teste de paternidade. Dirige-se ao Laboratório (na Penteada) ou telefona-nos, nós marcamos a hora e depois fazemos uma recolha de saliva. Os testes de paternidade são muito fáceis de fazer - pode haver o óbice do preço, mas mesmo assim nós ainda estamos a praticar preços bastante mais baratos que outros laboratórios: cada teste custa mil euros. Quando é urgente, como por exemplo para registar uma criança, podemos fornecer os resultados em 24 horas, mas normalmente fornecemos os resultados no espaço de uma semana. Que eu tenha conhecimento, no país, somos o laboratório mais rápido.

Que outros serviços prestam que estão acessíveis ao público em geral?
A.B. - O que nós estamos a fazer é implementar aqui na Região Autónoma da Madeira, análises que até agora não são feitas cá por ninguém. As análises desse tipo que se fazem, são feitas em laboratórios fora da região. Não nos interessa estar a competir com os laboratórios de análises clínicas - longe de nós essa ideia. Agora, isto leva tempo - até que os médicos, os farmacêuticos, os directores clínicos, as clínicas e os laboratórios de análises clínicas, etc., comecem a perceber que nós existimos, o que podemos fazer, e que passem a pedir-nos a nós em vez de continuar a pedir, por exemplo, a laboratórios do Continente.

Hélder Spínola (H.S.) - Também fazemos o teste para a despistagem da deficiência em alfa 1-antitripsina, que está associada a doenças pulmonares, para a hemocromatose hereditária e testes para uma gama diversificada de doenças associadas a marcadores dos genes responsáveis pela compatibilidade de órgãos e tecidos nos transplantes. Estamos a usar estes marcadores genéticos como auxiliares de diagnóstico para algumas doenças que lhes estão associadas, mas não estamos ainda a usar esses marcadores para aferir da compatibilidade de órgãos e tecidos - isso é feito no âmbito do registo nacional de dadores de órgãos e tecidos: há um sistema nacional e nós ainda não estamos inseridos, embora tenhamos esse objectivo e estejamos a trabalhar para isso. Já temos um protocolo com o Registo Nacional de Dadores de Medula Óssea, estamos a preparar o Laboratório e estamos à espera da decisão de um projecto que irá financiar esse centro, sendo que o objectivo passa por, em cooperação com o Centro Hospitalar do Funchal, constituir um centro dador do Registo Nacional de Dadores de Medula Óssea. Estávamos a tentar que esse projecto arrancasse já este ano, mas com os atrasos, antes do próximo ano ainda não estará a funcionar.

Explique em que consistem os marcadores genéticos?
H.S. - Quando falamos de marcadores, estamos a falar de características genéticas. Portanto, os genes têm determinadas características e algumas delas estão no centro do processo que origina uma certa doença. Nalguns casos, já se conhecem algumas partes do mecanismo da doença e já se desconfia que alguns genes estão associados ao seu despoletar. Portanto, olhamos para esses genes e para as características que têm e quais delas podem estar associadas ao aparecimento dessa doença. Mas existem outros marcadores em que nós acabamos por identificar uma associação mas ainda não sabemos qual é o mecanismo que está subjacente entre aquela característica genética e a própria doença. Muitas vezes fazemos este trabalho no escuro: desconfiamos que os genes estão associados e olhamos para eles para tentar encontrar uma ligação. É preciso ver que isto é investigação de fronteira.

O Laboratório também fornece um serviço que permite às pessoas descobrir mais acerca das suas origens genéticas. Como funciona?
A.B. - É algo que tem um interesse meramente pessoal e académico, mas que é bastante engraçado e nem sequer é muito caro, tendo um custo de apenas 100 euros. Ao longo da evolução, houve uma contribuição de uma série de povos até que a Península Ibérica terminou naquilo que é hoje: uns que vieram do Norte da Europa, outros que vieram do Magrebe, do Mediterrâneo, do Médio Oriente, etc. O que nós fazemos é traçar a origem das pessoas até ao seu ancestral máximo que é possível detectar, quer pela linhagem materna, quer pela linhagem paterna. Ou seja, podemos dizer de onde esse ancestral máximo é originário. Por vezes, as pessoas que o fazem têm algumas surpresas: por exemplo, em termos de linhagens maternas, sabemos que aqui na Madeira, 24% são africanas puras - e africanas abaixo do Sahara, não estamos a falar de magrebinas. Ou seja, 24% da população autóctone da Madeira, homens e mulheres, tem um ancestral feminino que veio de África e que chegou através da escravatura. Como interesse académico, isto é muito engraçado, porque depois vai acompanhado de uma história sobre as migrações dos povos, nomeadamente do grupo de pessoas a que pertencia o ancestral sobre o qual o cliente pediu informação. Até agora recebemos poucos pedidos, mas este tipo de serviço está muito em voga noutros países - os Americanos e Ingleses, por exemplo, adoram obter estas informações.

Estão neste momento a fazer várias investigações em colaboração com o Hospital Central do Funchal. Em que ponto estão estes projectos?
A.B. - A investigação sobre cardiopatias já deu os seus frutos. Foi a primeira que fizemos, em colaboração com o Serviço de Cardiologia do Hospital Central do Funchal e deu bons resultados. Esta investigação foi um bom projecto, foi publicada em revistas da especialidade e vamos retomá-la. O que se busca é saber se existem marcadores genéticos, ou que tipo de marcadores e combinações podem predispor uma pessoa para determinado tipo de malformação em termos cardíacos ou a nível da hipertensão. O processo passa por fazer uma amostragem de pessoas que sofrem de problemas de coração e depois uma amostra “cega” da população da Madeira para controlo. Depois, há que aplicar toda a metodologia a nível de baterias de testes, estatísticas, etc., para saber se a combinação de marcadores pode levar a uma maior predisposição para ter um problema. Isto é importante porque mesmo que a pessoa seja assintomática, no caso de ter uma associação de marcadores genéticos fortemente ligada a um determinado tipo de malformações e patologias, o médico pode estar de sobreaviso de maneira a poder antecipar qualquer tipo de problemas.

Os outros estudos que estão a fazer funcionam dentro da mesma lógica?
H.S.
- Passam sempre por procurar determinadas características genéticas que nos permitam identificar graus mais elevados de susceptibilidade àquela doença, como estamos a fazer com a Diabetes tipo 1: estamos a estudar nos doentes aqueles marcadores para depois comparar com a população de controle e ver quais são os marcadores genéticos que têm prevalência mais elevada nos doentes, indiciando, portanto, a existência de uma associação entre esses marcadores, por vezes directa e outras vezes indirecta. Nas várias doenças que estamos a estudar, é este o esquema: na diabetes, na asma, nos HLAs (Human Leukocyte Antigens) e nas cardiopatias, em que para além dos marcadores que já foram publicados estamos ainda a estudar outros.

A.B. - Também tivemos alguns casos de estudos que não foram melhor aproveitados, talvez por uma falta de sensibilidade da comunidade médica, o que não deixa de ser pena. Por exemplo, a pedido do Serviço de Gastrenterologia do Hospital Central do Funchal, colocámos a ponto uma técnica para detecção de mutações, chamada instabilidade microssatélites, nomeadamente para o rastreio do cancro do cólon. A técnica está muito bem montada e dá exactamente os resultados que se pretendem, mas no entanto, apesar de ter sido feita em colaboração com a equipa de Gastrenterologia, da parte do Hospital nunca houve depois desenvolvimentos do ponto de vista de requisição de testes.

Portanto, a procura de testes depende muito das pessoas que estão à frente de cada área?
A.T.F. - É preciso haver o reconhecimento por parte da direcção clínica da importância dos testes e isso depende bastante da exposição que os médicos fazem. E aqui, se os médicos não estiverem plenamente convictos de que aquela análise é importante, também não irão sensibilizar a direcção clínica na requisição dos testes. Temos um exemplo muito concreto: nos casos de infertilidade masculina e feminina, já tínhamos aqui marcadores genéticos optimizados e durante muito tempo ninguém pediu testes. O que aconteceu é que, com as idas a congressos, os médicos deram-se conta da potencialidade destes testes e começaram a fazer pedidos.

A.B. - Também convém sublinhar que tudo isto faz parte de um processo. É provável que haja pessoas que possam perguntar porque é que nós não avançámos mais até agora? Mas é preciso ver que nós implantámos tudo do zero, desde a instrumentação às técnicas moleculares, e isso é muito significativo. Fazer genética molecular é uma coisa que leva anos para aprender e todos nós continuamos ainda em formação. Vou dar um exemplo: a análise da citogenética, ou seja, dos cromossomas humanos, quer para a análise pré-natal quer para a pós-natal, exige que o técnico que está a fazer aquele serviço tenha plena consciência daquilo que está a “ler” ao microscópio, o que não se pode aprender de um dia para o outro: leva anos a conhecer os cromossomas humanos para poder detectar as anomalias, porque tudo é feito “a olho”. Isto é algo que só se pode aprender com o acumular de muita experiência.

Para quando prevêem ter os resultados das investigações que estão a levar a cabo?
H.S.
- Temos já os dados estatísticos e falta apenas publicar o artigo para a hemocromatose hereditária aqui na Madeira. Esta é uma doença genética que leva à acumulação de ferro em alguns órgãos, nomeadamente o coração, o fígado ou o pâncreas. Também já temos os dados e só falta escrever o artigo em relação à alfa 1-antitripsina, o mesmo estudo que foi feito aqui na Madeira, para o caso de Cabo Verde. A alfa 1-antitripsina é uma glicoproteína que protege os pulmões contra determinados factores, nomeadamente a poluição, embora não directamente. Protege contra uma acção de uma enzima, a neutrófilo elastase, que abre espaços no parênquima pulmonar para que os neutrófilos actuem na protecção dos pulmões contra infecções. Se houver uma redução nessa glicoproteína, a enzima vai abrir espaços em excesso, tornando o pulmão muito mais sensível ao fumo do tabaco, à poluição atmosférica, às poeiras e em alguns casos, mesmo sem muitos factores deste género, pode levar mesmo à doença pulmonar obstrutiva crónica. Em relação à asma, alguns marcadores dos HLAs já estão numa fase final de conclusão e no caso da diabetes tipo 1, já temos o trabalho muito avançado embora ainda não esteja finalizado.

Como funciona o Laboratório em termos de financiamento?
A.B. - O Laboratório faz parte da Universidade da Madeira. Sempre que efectuamos uma prestação de serviços, a Universidade retém uma percentagem, que é utilizada para ajudar a pagar a manutenção desta estrutura - a electricidade, a água, as limpezas, etc. É evidente que a falta de financiamento se reflecte muito ao nível do recrutamento de novos técnicos. Isto acaba por ser um pouco como uma bola de neve: se temos mais técnicos e se temos fundos, mesmo que sejam limitados, para despoletar novas técnicas moleculares, então podemos fazer investigação para as colocar a ponto, ou seja, para que possam ser utilizadas para fazer prestação de serviços. E a falta de dinheiro para isso - porque a Universidade, tal como todas as outras, está a passar por uma forte restrição financeira - faz com que não tenhamos verbas suficientes para pôr a ponto outros marcadores que seria interessantíssimo ter aqui na Região. E depois, temos uma agravante: tal como já disse, os nossos maiores clientes são os tribunais, por causa do Instituto de Medicina Legal, e o Serviço Regional de Saúde. Os tribunais ainda vão pagando razoavelmente, apesar de alguns atrasos, mas já no caso do Serviço Regional de Saúde, tudo o que vem do Hospital com requisição médica tem atrasos de pagamento muito grandes. O normal é haver um atraso de um ano, ou um ano e meio, mas até já houve casos com atrasos superiores. Nós não vamos parar o serviço, porque tomámos a responsabilidade de o fazer, mas quem avança com o dinheiro é a Universidade. Ora, se a Universidade está descapitalizada, onde é que vamos buscar o dinheiro para, por exemplo, comprar reagentes, de modo a poder continuar a assegurar o serviço? É necessário que o pagamento se faça mais em dia - o protocolo que nós assinámos dizia que tudo tinha de ser pago em 90 dias e esses três meses, nalguns casos, já vão em quatro anos…

Já expuseram este problema às autoridades de saúde?
A.B. - Já chamámos à atenção e eles vão pagando quando podem. A Universidade adiantou o que pôde e neste momento nós temos a investigação praticamente em ponto morto, por falta de verbas. Neste momento, estamos a usar os mínimos e estamos a usá-los com qualidade, porque não há nada que nós façamos que não esteja sujeito a um controle de qualidade externo. Todas estas técnicas foram introduzidas de forma muito sistemática e muito rigorosa. Nós não estamos aqui para fazer lucro, mas precisamos de assegurar que podemos pagar aos técnicos que trabalham connosco. O Laboratório tem de ter fundos para se auto-sustentar. E note-se que nós temos mecenas, que todos os anos nos dão aquilo que podem e que até agora têm sido uma boa parceria.

H.S. - Temos, por exemplo, a Bioforma, que é o principal mecenas do Laboratório, e a Santo Queijo. Para além destes, também recebemos alguns apoios pontuais, mas estes dois são anuais, o que nos permite fazer algum planeamento ao nível dos nossos recursos. Há alguns projectos que, se não fossem estes apoios, não se teriam concretizado. Por exemplo, o estudo que foi publicado recentemente, sobre a prevalência da deficiência genética alfa-1-antitripsina na população madeirense, em que se encontrou a prevalência mais elevada em termos mundiais até à data. Este trabalho, que não foi muito caro, não teria sido possível sem esses apoios.

Para terminar, podem “levantar o véu” sobre alguns projectos ainda por arrancar?
H.S. - Há todo um leque de investigações que é uma pena não poderem avançar no imediato, porque acredito que poderiam depois ter um impacto muito positivo em termos médicos. Por exemplo, há um estudo que tem a ver com a associação dos mesmos marcadores que estão ligados à compatibilidade dos tecidos a outras doenças: nós gostaríamos de estudar esses mesmos marcadores associados, por exemplo, à doença celíaca. Já temos parceiros no Hospital para este projecto há mais de um ano, mas ainda não conseguimos avançar apenas por causa do financiamento. No caso do cancro colo-rectal, houve um estudo na população grega que mostrou uma associação a marcadores dos genes HLA - este projecto também está previsto e os contactos com os médicos já estão feitos, pelo que estamos também apenas à espera de conseguir recursos financeiros. Outro projecto que vamos tentar começar no fim deste ano, é a deficiência em alfa 1-antitripsina nos doentes com doença pulmonar obstrutiva crónica - este já está programado com o Hospital, em particular com a médica que tem colaborado connosco nessa área, e vamos tentar começar mesmo que não obtenhamos financiamento.

 


 


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